O Espelho Quebrado: A Hipocrisia de Culpar o Futuro
Introdução: O Dedo Apontado para o Amanhã
É um refrão conhecido, quase um lugar-comum sussurrado em conversas preocupadas: “os jovens de hoje estão diferentes”, “estão menos inteligentes”, “não têm os mesmos valores”. Por trás dessa constatação, muitas vezes se esconde uma acusação velada, uma transferência sutil de responsabilidade. Aponta-se o dedo para a juventude como se ela fosse a única artífice de seu próprio destino, ou pior, a culpada pelos males de um tempo que ela ainda nem domina completamente. Há uma certa hipocrisia nesse gesto, uma tentativa talvez inconsciente dos adultos de se eximirem de sua própria participação na construção do presente – e, consequentemente, do futuro.
Não se trata de isentar os jovens de críticas ou responsabilidades individuais. Eles são, afinal, agentes em formação, navegando as complexas águas da transição para a vida adulta. Mas questionar a qualidade dessa travessia sem olhar para quem oferece o mapa, a bússola e, por vezes, as próprias tempestades, é um exercício de miopia conveniente. Se a sociedade não vai bem, a quem cabe a maior parcela de responsabilidade: aos que estão aprendendo a navegar ou aos que já detêm o leme há mais tempo?
O Peso do Poder e a Responsabilidade do Saber
Em qualquer estrutura social, a responsabilidade tende a recair sobre quem detém o poder e o conhecimento acumulado. No tecido intergeracional, são inegavelmente os adultos que ocupam essa posição. São eles que moldam as instituições, definem as regras do jogo, administram os recursos e, crucialmente, servem como referência – intencional ou não – para as gerações que os seguem.
Culpar os jovens por supostas falhas coletivas é ignorar essa dinâmica fundamental. É como o jardineiro que culpa a semente pela má colheita, sem considerar a qualidade do solo que preparou, a água que forneceu ou as pragas que permitiu se instalarem. Se os jovens parecem perdidos, desinteressados ou despreparados, a primeira pergunta deveria ser: que tipo de mundo, que tipo de exemplos, que tipo de orientação lhes estamos oferecendo?
A responsabilidade não é um fardo a ser evitado, mas uma consequência natural do poder e da experiência. Assumi-la não significa carregar uma culpa paralisante, mas reconhecer o papel ativo que cada geração adulta desempenha na configuração do presente e na preparação do futuro.
O Reflexo no Espelho: Referências e o Ciclo de Comportamentos
Os jovens não se formam no vácuo. Eles aprendem observando, imitando, reagindo aos modelos que lhes são apresentados. Os adultos são o espelho no qual a juventude busca seu reflexo, suas possibilidades, seus limites. Se esse espelho está trincado, distorcido ou simplesmente mostra uma imagem que condena em vez de guiar, que tipo de autoimagem esperamos que eles desenvolvam?
Quando adultos responsabilizam os jovens por falhas que deveriam ser suas, eles não estão apenas sendo injustos; estão perpetuando um ciclo. Estão ensinando, pelo exemplo, que a melhor forma de lidar com o erro é a negação e a projeção. Se não reconhecemos nossas próprias falhas, como podemos esperar que as próximas gerações aprendam a lidar com as suas de forma construtiva? É provável que reproduzam o mesmo comportamento, apontando o dedo para os jovens de sua própria época, num eterno retorno da hipocrisia.
O erro, como bem sabemos, é parte intrínseca da condição humana. Não é a ausência de falhas que define uma boa referência, mas a forma como lidamos com elas. Reconhecer os próprios erros, assumir a responsabilidade pelas más escolhas e demonstrar a capacidade de aprender e corrigir o rumo – esses são os verdadeiros legados que podemos deixar. Até nossos erros, quando reconhecidos e analisados, tornam-se ferramentas de aprendizado para os que vêm depois. Eles já saberão quais caminhos se mostraram infrutíferos, quais armadilhas evitar.
A Gestação de Si Mesmo: Acompanhando o Florescer
O professor Mário Sergio Cortella oferece uma metáfora poderosa: os jovens estão “grávidos deles mesmos”. Carregam em si um potencial imenso, um futuro em gestação, uma identidade em processo de formação. Essa imagem transforma nossa percepção da juventude: de problema a ser resolvido, ela passa a ser um processo a ser acompanhado, nutrido, cuidado.
Se aceitamos essa metáfora, o papel do adulto se redefine. Não somos juízes do desenvolvimento alheio, mas parteiras desse nascimento identitário. Cabe a nós criar um ambiente seguro e estimulante para essa gestação, oferecer os nutrientes necessários (conhecimento, valores, apoio emocional) e, acima de tudo, confiar no potencial que está ali, latente, esperando para desabrochar.
Esse acompanhamento não é passivo. Exige presença, diálogo, disposição para ouvir e, novamente, a coragem de ser um exemplo autêntico, com todas as falhas e aprendizados que isso implica. Acompanhar essa “gestação” significa preparar o terreno para que o fruto que dela brotar esteja não apenas pronto para viver seu próprio tempo, mas também para acompanhar as gestações futuras, as de sua própria época, quebrando o ciclo da acusação e instaurando um ciclo de responsabilidade compartilhada.
Conclusão: Quebrando o Ciclo, Assumindo o Legado
A tentação de culpar a juventude é compreensível. É mais fácil apontar o dedo para o “outro” do que confrontar nossas próprias insuficiências. Mas essa conveniência tem um preço alto: a perpetuação de ciclos de ressentimento e a abdicação da responsabilidade que nos cabe como detentores do presente.
Se os jovens são o futuro, esse futuro começa a ser semeado agora, nas ações, omissões e, principalmente, nos exemplos que nós, adultos, oferecemos. Assumir a responsabilidade pela preparação desse futuro não é um fardo, mas um privilégio e um dever. Implica reconhecer nossos erros, celebrar nossos acertos e, acima de tudo, oferecer o tipo de referência que gostaríamos de ter tido.
Que possamos ser os adultos que acompanham a gestação dos jovens com sabedoria e humildade, para que eles possam, por sua vez, florescer e acompanhar as gestações de seu próprio tempo. Que o eterno retorno seja não o da culpa projetada, mas o da responsabilidade assumida e do aprendizado contínuo.