Jeane, o Vulcão que Ninguém Apagou
Receber a notícia de um doutorado na família deveria ser apenas motivo de celebração, um rito de passagem acadêmico como tantos outros. Mas na nossa casa, a notícia da aprovação de Jeane soou diferente. Não foi apenas um nome numa lista; foi o eco de uma ruptura, a confirmação de que barreiras, mesmo as mais antigas e arraigadas, podem ruir. Vinda de uma linhagem onde a terra e o trabalho braçal ditavam os horizontes, onde o diploma universitário era miragem distante, a conquista dela ressoou como um trovão em céu de estiagem.
Jeane, minha irmã, a segunda na linha de cinco, sempre carregou dentro de si uma energia que desafiava a calmaria rural que nos cercava. Lembro pouco da infância, as memórias se esvaíram, mas a imagem dela, vibrante, inquieta, permanece. Era um vulcão em miniatura, pulsando com um “tesão pela vida” que nossos pais, criados na simplicidade e na contenção, jamais souberam como acolher. O fogo dela assustava, e o medo, como tantas vezes acontece, levou a uma decisão drástica: enviá-la para longe, para a cidade grande, na tentativa de apagar a chama que não compreendiam.
O exílio improvisado, disfarçado de oportunidade, foi cruel. A metrópole não a acolheu; mastigou-a e cuspiu-a de volta, grávida, marcada pela dureza de uma realidade imposta. As asas, que mal começavam a se abrir, foram arrancadas sem cerimônia. Tentaram silenciar o vulcão, soterrá-lo sob o peso da culpa e da responsabilidade precoce. Veio um casamento arranjado, mais uma estação em um caminho que ela não escolhia, mas que percorria com uma resiliência silenciosa.
Anos se passaram. A vida seguiu seu curso entre Itupiranga e as vilas poeirentas, com mais um filho nos braços e a rotina a ditar os dias. Mas o vulcão, adormecido sob as cinzas das provações, nunca se extinguiu por completo. Um dia, a decisão brotou, teimosa como a vegetação que renasce após a queimada: ela iria estudar. Sem exemplos familiares, sem incentivos externos, apenas com a força daquela energia antiga que voltava a borbulhar.
A jornada acadêmica foi árdua. Estradas de terra, caronas incertas, viagens de moto com a família inteira espremida, equilibrando sonhos e filhos. Cada aula era uma conquista, cada livro, uma batalha vencida. O primeiro emprego como professora, a pé ou a cavalo, foi a fagulha que reacendeu a dignidade. A Pedagogia, o concurso público, a coordenação conquistada pelo respeito dos colegas – cada passo era um testemunho da força que tentaram sufocar.
E agora, o doutorado. Um título que soa estrangeiro em nosso meio, quase irreal. Compreendo a incredulidade dela ao ver o próprio nome naquela lista. Não é dúvida sobre sua capacidade, mas o estranhamento de quem atravessou um deserto e se depara, subitamente, com um oásis que parecia existir apenas em lendas. A vida lhe ensinou a esperar pouco, a desconfiar das vitórias fáceis. Mas esta vitória não foi fácil; foi forjada no fogo da adversidade, na disciplina férrea e na teimosia de um vulcão que se recusou a permanecer inativo.
Que a incredulidade dê lugar ao orgulho, à plena consciência do merecimento. Que a Doutora Jeane, minha irmã, inspire não apenas a nós, sua família, mas a todos que carregam vulcões adormecidos. Que sua conquista seja um lembrete: o fogo interno pode ser abafado, mas jamais extinto. E quando ele desperta, é capaz de mover montanhas e reescrever destinos.