João de Leninha, Nél de Perça: Especulações Sobre Nomes e Lideranças Invisíveis
O nome de minha mãe é Marlene, mas quase ninguém a chama assim. Para a família, para os amigos, para a vida, ela é Leninha. E ela prefere o apelido, um detalhe que talvez diga mais do que parece. Leninha é, na minha percepção especulativa, o alicerce silencioso da nossa família. Digo silencioso porque duvido que ela tenha consciência plena disso, ou talvez não compreenda o conceito ou a função nesses termos. Ela não parece usar todo o potencial e oportunidade que essa posição central lhe confere. Mas a centralidade está lá.
Meu pai se chama João. Um nome comum, forte, bíblico. Mas em muitos círculos, ele não é apenas João. Ele é conhecido como João de Leninha. Essa forma de nomear, tão comum em certas culturas e regiões, sempre me intrigou. Não é “João, marido de Leninha”, mas “João de Leninha”, como se a identidade dele estivesse, de alguma forma, ancorada ou referenciada nela. Isso sustenta minha especulação sobre quem realmente detém a referência central na dinâmica familiar, apesar das aparências ou das convenções sociais.
Esse padrão não é único na minha família. Meu avô materno, Manoel, era universalmente conhecido pelo apelido Nél. Era o primogênito, o mais popular entre os irmãos, uma figura carismática. Sua mãe, minha bisavó, chamava-se Percilina, mas era conhecida por Perça, ou, mais carinhosamente, Madrinha Velha. E meu avô, apesar de sua própria popularidade e status de primogênito, era frequentemente identificado como Nél de Perça. Novamente, a referência masculina ancorada na figura feminina da geração anterior.
Sei que há um preconceito latente quanto a essa teoria, essa especulação. O senso comum, essa construção social tão poderosa e muitas vezes tão equivocada, dita que a mulher não deve ou não pode ser a referência principal, a líder, a alfa. Essa função, nos dizem desde sempre, é estritamente reservada a nós, homens. É o nosso fardo, nosso privilégio, nossa identidade prescrita.
Eu contesto essa máxima. Não com a intenção de reverter a fórmula, de propor que as mulheres devam ser a referência. É sempre um perigo criticar fórmulas estabelecidas, porque a tentação de propor ou impor outras é grande, e muitas vezes caímos na mesma armadilha que denunciamos. Não é esse o meu ponto. Meu ponto é a rigidez da regra e suas consequências.
Dedicar essa função de liderança exclusivamente a nós, homens, traz consequências desafiadoras, especialmente para aqueles que, como eu, não têm esse perfil ou essa predisposição natural. Eu não sou o alfa da minha relação. E fui desastroso tentando ser, em outros tempos, em outras dinâmicas. Tentar vestir uma persona que não me cabe foi uma experiência dolorosa e inautêntica, que gerou mais conflito do que harmonia. E impedi minha parceira de assumir essa função que claramente vejo agora era dela.
Penso que essa característica de liderança, essa centralidade, talvez não seja tão inata quanto gostamos de acreditar. Talvez ela possa ser despertada, ou mesmo imposta, por diversas intervenções e circunstâncias. Tenho duas irmãs gêmeas. Em sua dinâmica particular, uma delas claramente assumiu a função de guiar a outra desde muito cedo. O que levou a isso? Uma investigação profunda talvez revelasse fatores complexos, mas não é o que busco aqui. O que me interessa é a observação de que essa dinâmica de liderança pode surgir de formas inesperadas, independentemente do gênero.
Quando essa dinâmica de liderança feminina acontece no âmbito de uma relação heterossexual, ela abre portas para especulações e, quem sabe, para estudos mais aprofundados. Minha especulação leiga sugere que, em uma relação onde a mulher desempenha essa função de referência central e o homem compreende, respeita, aceita e colabora com essa dinâmica, o relacionamento parece ser menos conturbado. Parece haver menos atrito, menos disputa por um poder que talvez nenhum dos dois almeje da forma como a sociedade o prescreve.
Por outro lado, mesmo quando é o homem a desempenhar essa função tradicional de líder, o desconforto ainda pode ser latente. Nós, homens, somos frequentemente muito inseguros. Carregamos o peso de expectativas sociais que nos cobram força, controle, liderança constante. E, talvez por isso, precisamos constantemente testar nosso poder, reafirmar nossa posição, mesmo que isso gere tensão. Somos vítimas – não no sentido de coitadinhos, mas no sentido de prisioneiros – de regras que nós mesmos criamos e perpetuamos para nós mesmos.
Já as mulheres, na minha observação especulativa, não parecem ter essa mesma necessidade constante de auto validação através da demonstração de poder. Talvez por não terem sido historicamente sobrecarregadas com essa expectativa específica, ou talvez por encontrarem validação em outras esferas, elas pareçam navegar as dinâmicas de poder com mais fluidez, ou talvez com menos ansiedade.
Não quero, com isso, criar novas regras ou generalizações apressadas enquanto critico ou contesto as antigas. Como disse, é uma reflexão especulativa. Especulação é o meu forte, talvez meu refúgio. Não tenho compromisso algum com verdades absolutas, com teses científicas, com manuais de relacionamento. Tenho apenas minhas observações, minhas dúvidas, minhas contradições.
Observo minha mãe, Leninha, o alicerce talvez inconsciente. Observo meu pai, João de Leninha, confortável em sua referência. Observo meu avô, Nél de Perça, carismático em sua própria órbita, mas ainda assim nomeado em relação à mãe. E me observo, tentando entender meu próprio lugar, minhas próprias inadequações diante das fórmulas prontas.
Talvez a liderança não seja uma questão de alfa ou beta, de homem ou mulher. Talvez seja uma dança mais complexa, uma rede de influências e referências que se estabelece organicamente, apesar das regras que tentamos impor. Talvez o nome que carregamos, ou a forma como somos nomeados pelos outros, revele mais sobre essas dinâmicas sutis do que qualquer teoria sobre papéis de gênero.
Não sei. Continuo especulando. Continuo observando as contradições, as minhas e as do mundo. E talvez seja nesse espaço de dúvida, de questionamento sem respostas fáceis, que reside a verdadeira reflexão. Sem fórmulas, sem novas regras, apenas o eterno retorno da pergunta: quem somos nós, para além dos nomes e dos papéis que nos atribuem?