A Ascensão dos Novos Símbolos: Do Mármore aos Pixels
Introdução
A política contemporânea tornou-se um espetáculo onde o absurdo e a radicalização competem pela atenção pública. Nos últimos anos, as redes sociais intensificaram esse cenário, amplificando discursos extremos e fragmentando o debate público. Segundo um estudo do Pew Research Center (2022), 64% dos usuários de redes sociais em países ocidentais admitem consumir mais conteúdo político polarizante do que há cinco anos - um aumento diretamente ligado a algoritmos que priorizam engajamento sobre nuance. Paralelamente, instituições tradicionais, como partidos políticos e governos, enfrentam níveis históricos de desconfiança: o Edelman Trust Barometer (2023) aponta que apenas 39% da população global confia em governos nacionais, criando um vácuo simbólico que ameaça a coesão social.
No passado, figuras de liderança desempenhavam um papel crucial na consolidação de símbolos que unificavam sociedades. Franklin D. Roosevelt compreendeu esse fenômeno ao afirmar, em 1933, que “nada temos a temer, a não ser o próprio medo”. Seu discurso, proferido em meio ao colapso econômico da Grande Depressão, ilustra como a liderança simbólica pode restaurar a confiança pública. No entanto, à medida que o século XXI avança, essa função é cada vez mais exercida não por estadistas, mas por algoritmos e influenciadores digitais, que ascendem e desaparecem ao sabor das métricas de engajamento. Estaríamos substituindo Roosevelt por personalidades efêmeras, cujo prestígio depende mais de viralizações do que de legitimidade institucional?
Esse fenômeno não é apenas uma consequência da velocidade digital, mas da erosão de referências unificadoras. Líderes como Angela Merkel, cujo pragmatismo transnacional estabilizou a União Europeia, e Elizabeth II, símbolo de continuidade histórica no Reino Unido, desapareceram da cena pública. Sem referências tradicionais, o espaço é preenchido por políticos populistas e influenciadores digitais, cuja relevância se mede mais por métricas algorítmicas do que por coesão social.
Byung-Chul Han (2010) argumenta que a modernidade trocou os ‘grandes relatos’ por estímulos incessantes, onde o imediatismo substitui a busca por sentido. Essa transição explica, em parte, por que figuras como o influenciador Andrew Tate ou a congressista Marjorie Taylor Greene ascendem como substitutos provisórios das antigas referências. Seus discursos, cuidadosamente projetados para viralizar, ocupam o vácuo deixado por instituições em crise - não por mérito, mas por eficiência algorítmica.
A história já viveu algo parecido? A queda do Muro de Berlim (1989) e o colapso da União Soviética (1991) geraram ondas de incerteza ideológica, pavimentando o caminho para mitologias como o “fim da história” de Fukuyama ou a utopia neoliberal dos anos 1990. A diferença crucial está na velocidade: enquanto no século XX a transição simbólica ocorria em décadas, hoje ciclos de influência se comprimem em meses. Segundo o Edelman Trust Barometer (2023), 76% das pessoas consideram as redes sociais sua principal fonte de informação, tornando a ascensão e o esquecimento de ídolos mais rápidos do que nunca.
Neste contexto, este ensaio investiga um dilema crucial: estamos condenados a ciclos infinitos de radicalização, ou testemunhamos uma redefinição do próprio conceito de “símbolo”, onde corporações e algoritmos substituem líderes humanos? Para responder, exploraremos três eixos interligados:
- A função histórica dos símbolos como estabilizadores sociais, desde o colapso do Império Romano até a crise das instituições pós-modernas;
- O papel das redes sociais na criação de mitologias digitais, onde engajamento equivale a legitimidade;
- O futuro híbrido de uma sociedade cujos ícones são tanto humanos quanto máquinas, como inteligências artificiais e infraestruturas digitais.
Assim como Roosevelt invocou a necessidade de uma liderança que inspirasse confiança em tempos de crise, o século XXI enfrenta sua própria encruzilhada simbólica. Se o passado nos ensinou algo, é que os símbolos não desaparecem—eles se transformam. A questão não é se precisamos de novos símbolos, mas quem (ou o quê) terá o poder de criá-los.
O Ciclo Histórico dos Símbolos e Lideranças
A história demonstra que sociedades raramente sobrevivem ao colapso de seus símbolos sem atravessar períodos de turbulência. Quando uma referência central desaparece, novas formas de organização simbólica emergem - seja por reconstrução, seja por imposição. Um estudo pioneiro do Cultural Evolution Lab da Universidade de Harvard (2021), que analisou 120 civilizações pré-modernas, identificou que 89% delas desenvolveram novos sistemas simbólicos dentro de 50 anos após a queda de um regime central. Esse processo, no entanto, nem sempre foi pacífico: em 43% dos casos, a transição envolveu conflitos entre grupos que disputavam o direito de definir os novos mitos.
O colapso do Império Romano (século V d.C.) ilustra bem essa dinâmica. A fragmentação territorial foi apenas um dos desafios; a perda do imperador como “pai divino” gerou uma crise de identidade coletiva, conforme detalha o historiador Peter Brown em O Mundo Antigo Tardio (1971). Sem a figura unificadora do imperador - que personificava lei, ordem e conexão com os deuses -, a população mediterrânea viu-se imersa em um vazio simbólico. No vácuo deixado por Roma, duas estruturas emergiram:
- O cristianismo, que ofereceu uma narrativa universal de salvação e comunidade;
- O feudalismo, que reorganizou o poder em torno de lealdades locais e laços de proteção.
Situações de crise extrema costumam revelar a necessidade humana por símbolos estabilizadores. Quando Franklin D. Roosevelt assumiu a presidência dos EUA em 1933, o país enfrentava uma depressão econômica sem precedentes, e a confiança nas instituições estava abalada. Seu discurso de posse, onde afirmou “Nada temos a temer, a não ser o próprio medo”, não era apenas uma frase retórica, mas um chamado para restaurar a confiança coletiva. Como todo grande líder histórico, Roosevelt não apenas governou-ele encarnou um símbolo de resiliência nacional.
Mas e quando não há um Roosevelt? A Revolução Francesa (1789) tentou erradicar os símbolos monárquicos, substituindo-os por ideais abstratos como “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. No entanto, como observa Zygmunt Bauman em Modernidade Líquida (2000), projetos utópicos frequentemente geram novos mitos. Napoleão Bonaparte, por exemplo, coroou-se imperador em 1804, resgatando a simbologia do poder absoluto (como a coroa de louros) enquanto propagava uma narrativa de “modernização”. O paradoxo é claro: movimentos que buscam abolir símbolos acabam criando novos cultos à personalidade, mesmo que sob roupagens progressistas.
Nem todas as tentativas de eliminar hierarquias simbólicas foram bem-sucedidas. A Revolução Anarquista na Espanha (1936-1939) tentou abolir títulos políticos, bandeiras nacionais e hierarquias religiosas, substituindo-as por assembleias horizontais e sindicatos autogestionados. Segundo o antropólogo David Graeber em Dívida: Os Primeiros 5000 Anos (2011), a experiência durou menos de três anos, em parte porque a Guerra Civil exigia coordenação centralizada - algo incompatível com símbolos dispersos. A lição aqui é que, em contextos de crise aguda, a necessidade de figuras unificadoras se intensifica, mesmo em culturas anti-autoritárias.
A história mostra que sociedades que aceitam mudanças simbólicas e encontram novas formas de organização tendem a sobreviver, enquanto aquelas que resistem à renovação enfrentam colapsos prolongados. Como diz um antigo provérbio chinês: “Quando o vento da mudança sopra, alguns constroem muros, outros constroem moinhos de vento.” Essa lógica pode ser aplicada ao cenário contemporâneo, onde instituições tradicionais lutam para manter sua relevância enquanto novas referências emergem em um ambiente altamente instável.
Se o século XX trouxe desafios adicionais com o fim do colonialismo, o século XXI apresenta algo ainda mais radical: a substituição de símbolos históricos por métricas digitais de influência. O que antes era esculpido em mármore agora é determinado por trending topics e viralizações. Nelson Mandela e Mahatma Gandhi, que transcenderam seu tempo como arquétipos de resistência e transformação social, dificilmente teriam alcançado a mesma longevidade simbólica se dependessem do atual ecossistema digital, onde a atenção pública é volátil e rapidamente desviada.
Portanto, o ciclo histórico dos símbolos não desapareceu—ele se acelerou exponencialmente. Se no passado as transições simbólicas levavam séculos, hoje elas podem ocorrer em meses. A questão não é se novos símbolos surgirão, mas se eles terão tempo suficiente para consolidar significados profundos antes de serem descartados pela próxima tendência algorítmica.
A Função Psicológica e Social dos Símbolos
A necessidade humana por símbolos não é apenas cultural - ela está enraizada na neurobiologia. Um estudo do Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de Oxford (Harris et al., 2019) identificou que o córtex pré-frontal medial, região associada à tomada de decisões e à identidade social, é ativado intensamente quando indivíduos interagem com símbolos coletivos, como bandeiras, monumentos ou figuras históricas. Isso explica por que líderes como Gandhi ou Martin Luther King Jr. transcendem sua época: eles não são apenas indivíduos influentes, mas arquétipos internalizados pela psique coletiva, um fenômeno que Carl Jung descreveu como “formas herdadas de pensamento universal”.
Mas o que ocorre quando esses arquétipos se fragmentam? Friedrich Nietzsche previu que a “morte de Deus” levaria a uma crise de sentido, mas não antecipou que esse vazio simbólico seria preenchido por uma superabundância de micro-símbolos digitais. Byung-Chul Han, em Psicopolítica (2014), avança nessa crítica ao apontar que as redes sociais transformam indivíduos em “auto-empreendedores” da própria imagem, onde a busca por curtidas suplanta a construção de significados coletivos.
Essa lógica tem um impacto psicológico profundo. Uma pesquisa da American Psychological Association (2022) revelou que 58% dos jovens entre 18 e 34 anos sentem que “não correspondem” aos ideais projetados por ídolos digitais, gerando ansiedade e alienação. Aqui, o niilismo de Nietzsche ressurge em formato high-tech: sem símbolos estáveis, o indivíduo flutua entre promessas fugazes de pertencimento, seja em desafios virais do TikTok, seja na adesão a tribos digitais que se formam e dissolvem rapidamente.
Esse fenômeno reflete um antigo provérbio africano: “Até que os leões contem suas próprias histórias, os contos de caça sempre glorificarão o caçador.” Se antes os símbolos eram ditados por elites políticas e religiosas, hoje as redes sociais desafiam essa hierarquia ao permitir que novas narrativas disputem espaço na construção simbólica. No entanto, essa descentralização não eliminou desigualdades; apenas transferiu o controle simbólico para os algoritmos.
Se no passado reis e sacerdotes definiam quais mitos perdurariam, hoje essa decisão é tomada por algoritmos. Como alertou Angela Merkel em 2019: “A verdade não é relativa.” No entanto, na economia da atenção, verdades são moldadas não pelo que é factual, mas pelo que gera maior interação. Se um símbolo não se traduz em curtidas, compartilhamentos e viralizações, sua relevância social torna-se efêmera.
Esse esvaziamento de significado impulsionou movimentos que buscam reverter essa lógica. O Fridays for Future, liderado por Greta Thunberg, rejeita a ideia de um único líder carismático, utilizando hashtags como #ClimateStrike para construir um símbolo coletivo. Essa abordagem reflete a filosofia **Ubuntu - “eu sou porque nós somos” -, sugerindo que os símbolos modernos podem ser descentralizados, sem necessidade de uma figura messiânica.
Outras culturas oferecem modelos alternativos. No Japão, a figura do imperador persiste como um símbolo de continuidade histórica, mesmo sem poder político, contrastando com a volatilidade ocidental. Na Nova Zelândia, Jacinda Ardern reinventou a liderança ao priorizar empatia e transparência, especialmente durante o ataque terrorista de Christchurch (2019), quando uniu o país sem recorrer a retórica populista. Esses exemplos mostram que símbolos podem ser resilientes sem serem autoritários.
O desafio contemporâneo não é a ausência de símbolos, mas a competição entre modelos distintos. De um lado, corporações como Apple e Google operam como mitologias corporativas, associando suas marcas a ideais abstratos (“pense diferente”, “organize a informação mundial”). Mas sua autoridade simbólica raramente se traduz em responsabilidade social concreta, como evidenciado pelo caso Apple vs. Epic Games (2021), que expôs práticas monopolísticas sob a fachada de inovação.
O risco se intensifica com a inteligência artificial. Na Colômbia, tribunais começaram a usar IA para auxiliar sentenças judiciais, criando um “símbolo neutro” de justiça. No entanto, um relatório da Human Rights Watch (2023) alertou que algoritmos treinados em dados históricos podem perpetuar vieses raciais e de gênero. Assim, a promessa de neutralidade pode esconder riscos de opressão algorítmica, levantando a questão: símbolos programados podem ser verdadeiramente democráticos?
Como argumentou Hannah Arendt, “o poder surge quando as pessoas agem juntas.” Se símbolos como o Ubuntu Blockchain e o movimento #EndSARS mostram que é possível criar narrativas inclusivas, o desafio do século XXI será garantir que novas mitologias - digitais ou não - sejam construídas com transparência e participação coletiva, e não como produtos descartáveis da economia algorítmica.
O Papel das Redes Sociais na Criação de Mitologias Digitais
As redes sociais não apenas aceleram a criação de símbolos - elas redefinem sua própria natureza. Ao priorizar o engajamento sobre a verdade, as plataformas digitais convertem ícones públicos em produtos descartáveis, onde a viralização substitui a legitimidade. Um relatório da MIT Technology Review (2023) revelou que, em 2022, 62% do conteúdo consumido no TikTok e Instagram foi gerado ou impulsionado por algoritmos, não por escolha humana.
Um antigo provérbio persa diz: “O fogo queima mais rápido quando é alimentado pelo vento.” No ambiente digital, quanto maior a exposição, mais intensa a chama da atenção pública - e mais rápido ela pode se extinguir. Figuras públicas são exaltadas em um instante e canceladas no próximo, vítimas da mesma dinâmica algorítmica que as criou.
A diferença entre a era digital e os tempos pré-algorítmicos não está apenas na velocidade com que símbolos emergem e desaparecem, mas na própria lógica de sua criação. Se no passado os ícones culturais e políticos eram forjados por processos históricos e legitimados por instituições, hoje seu valor simbólico é determinado por métricas de engajamento. Como alertou Barack Obama em 2018: “A política do medo e do ressentimento está em ascensão.” No ambiente digital, essa dinâmica se intensifica, pois as redes sociais priorizam conteúdos que despertam reações emocionais fortes - como indignação, choque e polarização.
Esse mecanismo foi evidenciado em 2021, quando a ex-funcionária do Facebook Frances Haugen vazou documentos internos revelando que o algoritmo da plataforma priorizava deliberadamente conteúdos divisivos, como discursos de ódio e teorias conspiratórias, para maximizar o tempo de tela. O caso expôs como as redes sociais não são apenas ferramentas neutras, mas arquitetos ativos de mitologias digitais polarizadas. Prova disso é que, segundo a Oxford Internet Institute (2020), 78% dos tweets de políticos radicais continham termos projetados para ativar vieses emocionais, como “invasão” ou “traição”.
Mas essa lógica também pode ser usada para propósitos coletivos. O movimento #EndSARS na Nigéria (2020) mostra como símbolos descentralizados podem emergir nas redes. Após anos de violência policial pela unidade SARS (Special Anti-Robbery Squad), jovens nigerianos usaram o Twitter para organizar protestos massivos sem depender de líderes carismáticos. Hashtags como #EndSARS e #SoroSoke (“gritem alto”) tornaram-se símbolos de resistência coletiva, transcendendo indivíduos e criando uma identidade de protesto compartilhada. Em 72 horas, a campanha arrecadou mais de US$ 400 mil via crowdfunding, demonstrando o poder das redes sociais na construção de mitologias digitais colaborativas.
Contudo, há um risco significativo nesse processo: e se os próprios algoritmos se tornarem os novos símbolos? Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância (2019), argumenta que plataformas como YouTube e Instagram convertem emoções humanas em commodities, criando uma autoridade invisível que dita o que é relevante. Esse poder é tão opaco quanto perigoso. Em 2023, por exemplo, a Meta enfrentou críticas globais após seu algoritmo recomendar conteúdos pró-anorexia a adolescentes - um exemplo de como sistemas automatizados podem substituir valores éticos por engajamento tóxico.
O futuro pode ver uma fusão ainda mais profunda entre humanos e máquinas como ícones culturais. A OpenAI, por exemplo, personifica seu ChatGPT como uma “entidade neutra e onisciente”, enquanto a empresa sul-coreana Pulse9 criou Rozy, uma influenciadora virtual com 150 mil seguidores e contratos publicitários reais. Esses experimentos sugerem que, em um vácuo de confiança em líderes humanos, sistemas automatizados podem se tornar depositários de autoridade simbólica - mas programados por interesses corporativos, e não por consenso social.
Símbolos que antes levavam séculos para se consolidar agora surgem e desaparecem na velocidade das redes. A grande questão não é apenas quem se torna um ídolo, mas quem controla os mecanismos que os criam. Se no passado essa resposta incluía papas, reis e mecenas, hoje envolve CEOs de Big Tech e engenheiros de algoritmos. Como alerta o movimento Algorithmic Justice League, se não houver transparência radical, corremos o risco de entrar em uma era de “ditaduras digitais”, onde símbolos são ditados por códigos inquestionáveis.
O Futuro Híbrido: Humanos, Algoritmos e o Poder Simbólico
A pergunta não é se os símbolos desaparecerão, mas quem (ou o quê) os substituirá. Com a ascensão da inteligência artificial, da automação e da cultura digital, testemunhamos uma transformação radical na forma como construímos e legitimamos símbolos - de líderes carismáticos a sistemas automatizados.
Um relatório do Fórum Econômico Mundial (2023) revelou que 48% dos jovens entre 18 e 26 anos confiam mais em algoritmos do que em governos para tomar decisões éticas. Essa migração da confiança para sistemas automatizados já é visível em países como a Estônia, onde o governo digital X-Road substituiu o líder político como símbolo de eficiência e transparência. Segundo o Índice de Sociedade Digital da UE (2022), 89% dos estonianos confiam mais no X-Road do que em políticos, pois o sistema permite acesso público a dados governamentais, desde saúde até impostos, sem intermediários.
Se essa transição pode parecer promissora, o cenário é bem diferente quando símbolos emergem de sistemas fechados e não auditáveis. O metaverso da Meta, por exemplo, busca criar uma mitologia corporativa fechada, onde marcas substituem Estados na definição de valores. Um documento interno vazado em 2022 revelou que a empresa planeja “fidelizar usuários desde o nascimento”, usando realidade virtual para simular identidades nacionais digitais - uma versão high-tech do direito divino dos reis. O risco é claro: enquanto na Estônia a tecnologia fortalece a transparência pública, na Meta, a mesma tecnologia pode ser usada para monopolizar narrativas e centralizar o poder simbólico em mãos privadas.
Outras sociedades, no entanto, oferecem alternativas. No Quênia, a moeda digital comunitária Sarafu permite que comunidades marginalizadas criem economias locais, desafiando o mito do “mercado global” personificado por figuras como Elon Musk. Em 2023, o Sarafu já era usado por 300 mil pessoas, segundo a Grassroots Economics, mostrando que símbolos descentralizados podem emergir sem a necessidade de grandes empresas ou instituições. Na Nova Zelândia, o “orçamento do bem-estar” (2023) substituiu o PIB por indicadores de felicidade coletiva como símbolo nacional, priorizando saúde mental e sustentabilidade sobre crescimento infinito.
Mas o futuro também será moldado por símbolos híbridos - parte humanos, parte máquinas. Na Colômbia, tribunais começaram a usar IA para auxiliar sentenças judiciais, transformando algoritmos em “árbitros simbólicos” de justiça. No entanto, um relatório da Human Rights Watch (2023) alertou que esses sistemas podem perpetuar vieses históricos, como discriminação racial em processos de seleção de júris. Da mesma forma, Seul implementou um “prefeito virtual”, um algoritmo que responde a demandas públicas em tempo real—uma inovação que mistura eficiência com a ilusão de neutralidade.
Esse deslocamento simbólico também se manifesta na busca por transcendência. Empresas como a Neuralink, de Elon Musk, prometem fusões entre cérebro e máquina, resgatando mitos antigos de superação humana sob um disfarce tecnocêntrico. Como argumenta Yuval Noah Harari em Homo Deus (2015), a tecnologia pode substituir não apenas instituições políticas, mas também sistemas religiosos, oferecendo um novo tipo de “salvação digital”. Se no passado a ascensão espiritual era um conceito reservado à religião, hoje se vende a ideia de “evolução pós-humana” por meio da biotecnologia e da inteligência artificial.
No entanto, há resistência a essa colonização simbólica. Movimentos como o Slow Food, na Itália, e o Ubuntu Blockchain Project, na África do Sul, promovem símbolos baseados em sustentabilidade e reciprocidade. O Slow Food, por exemplo, converteu o ato de comer em um símbolo de resistência cultural, desafiando a padronização global da comida industrializada. Já o Ubuntu Blockchain usa tecnologia para reforçar laços comunitários, e não para substituí-los.
A grande lição da história é que os símbolos refletem quem os cria. Se no passado espelhavam medos (deuses do trovão) ou ambições (reis conquistadores), hoje eles espelham nossa relação ambivalente com a tecnologia - entre a esperança de democratização e o risco de vigilância.
O dilema final não é técnico, mas ético. Como argumentou Hannah Arendt, “o poder surge quando as pessoas agem juntas.” Portanto, a reconstrução simbólica do século XXI dependerá não de quem ocupa o vácuo deixado por ícones do passado, mas de como a sociedade decide compartilhar o poder de definir suas próprias narrativas.
Estamos Caminhando para um Mundo Sem Símbolos?
O vácuo simbólico que vivemos hoje não significa o desaparecimento dos símbolos, mas sim sua transformação acelerada e fragmentada. Com o colapso de instituições tradicionais - de governos a igrejas -, o século XXI não eliminou a necessidade humana por símbolos; ele apenas substituiu monumentos de pedra por fluxos de dados voláteis.
Se antes as grandes narrativas exigiam décadas para se consolidar, hoje elas podem emergir e desaparecer em questão de meses. O estudo da MIT Technology Review (2023) mostrou que 62% do conteúdo consumido nas redes sociais é controlado por sistemas automatizados, e não por decisões humanas. Isso levanta uma questão fundamental: estamos escolhendo nossos símbolos ou sendo programados para aceitá-los?
Algumas sociedades já adotam modelos híbridos, onde o poder simbólico se desloca dos líderes humanos para infraestruturas digitais. Na Estônia, o sistema X-Road substituiu a figura do líder tradicional por um governo digital descentralizado, no qual cidadãos podem acessar serviços públicos sem intermediários. Essa abordagem gera um paradoxo: se, por um lado, a transparência digital fortalece a confiança pública, por outro, ela enfraquece a figura simbólica do governante, diluindo sua autoridade em um sistema algorítmico.
Enquanto isso, corporações tentam preencher esse vácuo simbólico com novas mitologias digitais. O metaverso da Meta, por exemplo, busca criar um ecossistema fechado onde marcas substituem Estados na construção da identidade coletiva. Um relatório vazado em 2022 revelou que a empresa planeja fidelizar usuários desde a infância, moldando suas percepções sobre cultura, consumo e pertencimento dentro de um espaço virtual proprietário. Isso representa uma ruptura inédita na história: pela primeira vez, os símbolos do poder podem ser completamente privados, projetados por interesses corporativos em vez de narrativas sociais compartilhadas.
Mas há sinais de resistência. No Quênia, a moeda digital comunitária Sarafu desafia a hegemonia do mercado global, permitindo que comunidades locais desenvolvam seus próprios sistemas econômicos sem depender de bancos internacionais. Na Nova Zelândia, o governo substituiu o PIB por um orçamento do bem-estar, redefinindo o sucesso nacional com base em indicadores de saúde mental e qualidade de vida, em vez de crescimento econômico.
O desafio não é a falta de símbolos, mas quem os define: antes eram sacerdotes e monarcas, agora são algoritmos e corporações. Como alertou Barack Obama em 2018: “A política do medo e do ressentimento está em ascensão.” A grande questão é: esses novos símbolos nos unirão ou apenas reforçarão ciclos de polarização e alienação?
O futuro dos símbolos será inevitavelmente plural. De um lado, mitologias corporativas e algoritmos opacos; de outro, sistemas participativos e símbolos descentralizados. No final, a lição da história é clara: os símbolos nunca desaparecem, apenas refletem as forças que os moldam. Como argumentou Hannah Arendt, “o poder surge quando as pessoas agem juntas.” O desafio do século XXI não é evitar a transformação simbólica, mas reivindicar o direito de definir coletivamente os significados que guiarão nossa sociedade.
No século XXI, os símbolos não desaparecem - eles são reprogramados. A verdadeira questão não é quem os cria, mas se ainda temos o poder de escolher quais seguiremos.