A Voz que Encanta, a Terra que Grita: Oratória, Colonização e o Silêncio da Natureza
Introdução: O Feitiço da Palavra
Há uma equivalência incômoda que assombra a política: se a violência é a ferramenta do bárbaro, a oratória é a arma do civilizado. Ambas, em suas essências, buscam subjugar, convencer, impor uma vontade sobre a outra. Mas por que a palavra bem dita, o discurso eloquente, exerce sobre nós um fascínio tão profundo, quase hipnótico? Seríamos nós, herdeiros de milênios de mitos, epopeias e contos de deuses e heróis, irremediavelmente suscetíveis à sedução de uma boa história, mesmo quando ela mascara intenções sombrias?
A história está repleta de mestres da palavra: os sofistas gregos, capazes de defender qualquer tese com igual brilho; políticos que moveram multidões com promessas e paixão; e, de forma particularmente trágica, os colonizadores, cujos discursos de salvação, progresso e fé legitimaram genocídios e a imposição de suas culturas sobre mundos inteiros. Esse encantamento parece permear todas as camadas sociais, do senso comum aos círculos intelectuais, todos capturados por narrativas que, ao serem investigadas mais a fundo, revelam não necessariamente uma falha no discurso em si, mas na natureza intrinsecamente sedutora e, por vezes, manipuladora da própria oratória.
O Eco Colonial e a Sabedoria Ignorada
No Brasil, o eco desse discurso colonial ainda ressoa alto. As ideias dos colonizadores, que chegaram posando de salvadores, deuses ou emissários divinos, perpetuam-se em nossa estrutura social e em nossa relação com os povos originários. Estes, presentes nestas terras há cerca de 15 mil anos, segundo estimativas, vêm sendo sistematicamente exterminados e marginalizados desde a chegada dos europeus. Por que a narrativa do colonizador teve tanto sucesso? Foi a promessa de salvação? A força das armas disfarçada de missão civilizatória?
A pergunta que raramente fazemos, seduzidos que fomos pela narrativa do progresso europeu, é: como esses povos originários conseguiram viver por milênios em relativa harmonia com a natureza? Em menos de 500 anos, nós, os herdeiros da colonização, deixamos um rastro de destruição ambiental que ameaça nossa própria permanência. No entanto, o discurso dominante ainda é o de que eles precisam aprender conosco. Que petulância colossal! Por que a recusa em aprender com aqueles que demonstraram uma sabedoria ecológica e uma resiliência cultural que sobreviveu a milênios e a um genocídio contínuo?
Será que a oratória dos colonizadores, com sua promessa de um Deus único e transcendente, nos fez sentir superiores à natureza, nos deu a licença divina para dominá-la e explorá-la sem limites, assim como fizeram (e fazem) com os corpos e culturas indígenas?
O Paradoxo Marina Silva: Quando a Mensagem Não Basta
Nesse contexto, o caso de Marina Silva torna-se um enigma fascinante. Sua trajetória política é marcada por uma bandeira explícita, coerente e de urgência inquestionável: a preservação da natureza, o equilíbrio entre produção e sustentabilidade, a defesa dos povos da floresta. Seu discurso é consistente com sua história de vida. No entanto, por que essa oratória, que trata da sobrevivência de nossa própria espécie no planeta, não consegue seduzir a grande maioria? Seguidores existem, é claro, mas falta a tração popular que outros discursos, muitas vezes menos coerentes ou até mesmo destrutivos, conseguem alcançar.
As explicações fáceis apontam para seu físico, sua voz, sua origem. Se isso for verdade, revela algo perturbador sobre nós: a importância desmedida que damos à embalagem em detrimento do conteúdo, ao mensageiro em detrimento da mensagem. Por que o corpo e a voz do orador são tão cruciais na legitimação de um discurso, especialmente quando a causa defendida transcende a própria figura política?
Talvez o “problema” de Marina Silva seja justamente esse: sua causa não é ela. Sua luta é pela permanência da vida, pela floresta, por um futuro coletivo. Em um cenário político frequentemente dominado por personalismos e projetos de poder individuais, uma causa tão universal e descentrada pode parecer abstrata, menos mobilizadora do que a promessa de um líder forte ou a identificação com uma figura carismática que encarne as aspirações (ou ressentimentos) do público. Qual outro político brasileiro pode se gabar de uma luta mais auspiciosa e, ao mesmo tempo, tão pouco centrada em si mesmo?
A Natureza: Deusa Esquecida ou Obstáculo ao Progresso?
Isso nos leva de volta à nossa relação com a natureza. Precisaríamos transformá-la em um deus, em uma entidade mítica a ser venerada, para que sua preservação se tornasse uma causa popularmente sedutora? Ou será que as ideias de deuses transcendentes, herdadas da colonização e de outras tradições, já nos colocaram em um pedestal imaginário, nos fazendo sentir seres à parte, superiores à natureza e, portanto, com o direito de subjugá-la?
A oratória que prevalece, muitas vezes, é a do progresso a qualquer custo, da exploração sem limites, da natureza como recurso a ser dominado. É um discurso que ecoa a lógica colonial, mesmo que proferido por vozes contemporâneas. A dificuldade em abraçar massivamente a causa ambiental, mesmo diante da crise climática evidente, sugere que estamos presos a narrativas antigas, seduzidos por uma oratória que nos promete poder e controle, mesmo que nos leve à autodestruição.
Conclusão: Para Além do Encantamento
A intriga sobre o poder da oratória nos confronta com nossa própria vulnerabilidade à sedução da palavra. Reconhecer que fomos e somos moldados por discursos, muitos deles herdados de processos históricos violentos e injustos, é o primeiro passo para desenvolver um ouvido mais crítico.
O caso de Marina Silva e a persistente marginalização das sabedorias indígenas nos convidam a questionar quais vozes escolhemos ouvir e por quê. Precisamos desconstruir a ideia de que a legitimidade de uma mensagem depende da performance do mensageiro ou de sua adequação a padrões estéticos e corporais hegemônicos.
Talvez a tarefa mais urgente seja aprender a ouvir para além da oratória, para além do feitiço da palavra bem colocada. Ouvir a coerência entre discurso e prática. Ouvir a urgência silenciosa da natureza que grita por socorro. Ouvir as vozes daqueles que, por milênios, souberam viver em harmonia com este planeta. Talvez assim possamos começar a nos libertar do eterno retorno das narrativas que nos encantam e nos destroem.