O Ocaso e a Colheita: Reflexões Sobre o Envelhecimento dos Pais
Meus pais passaram dos 60 anos. É uma fase desafiadora que me faz contemplar não apenas a trajetória deles, mas também o meu próprio caminho e o eterno ciclo das gerações. Observá-los agora é como testemunhar o sol que, após atingir o zênite, inicia sua jornada descendente – ainda brilhante, ainda essencial, mas com uma qualidade diferente de luz.
O Contraste Entre Aurora e Ocaso
Quando se é jovem, as expectativas superam as preocupações. É um universo que se abre diante de nós. As possibilidades vão ao infinito, e é até difícil navegar em uma única direção. A juventude é como uma manhã de primavera, onde cada caminho parece promissor, cada porta entreaberta convida à exploração.
Meus pais também viveram essa manhã. Casaram-se jovens – minha mãe com apenas 16 anos, meu pai com 21, em novembro de 1979. Menos de um ano depois, em setembro de 1980, eu nasci. Seguiram-se minha irmã dois anos depois, outro irmão seis anos após, e finalmente, 14 anos mais tarde, minhas duas irmãs gêmeas. Plantaram suas sementes com a confiança de quem tem todo o dia pela frente.
Mas depois das viagens e histórias vividas, fica difícil encontrar energias para plantar depois do meio-dia. É assim que eles estão agora. Já criaram os filhos. Os filhos saíram de casa. Têm suas próprias vidas, filhos e desafios próprios. O campo que antes exigia constante atenção e cuidado agora está mais silencioso. A casa, antes repleta de vozes e passos apressados, ecoa com um silêncio que às vezes parece ensurdecedor.
Nessa fase da vida, começamos a fazer considerações que a juventude não permite. É o peso da colheita – o momento de olhar para o que foi plantado e avaliar os frutos. Alguns doces, outros amargos, mas todos parte da mesma safra que é uma vida.
Histórias Não Planejadas
Eles moraram no interior sempre, a vida inteira na zona rural. Cursaram até a quarta série. As coisas foram acontecendo e a vida passando. Nada de planejamento aparente. Talvez nem considerassem tal possibilidade. Provavelmente porque se casaram muito jovens e depois, no meio de toda essa confusão de criar cinco filhos, não dava mais para parar, sentar e avaliar a situação.
Há algo de profundamente nietzschiano nessa trajetória não planejada. O eterno retorno não como escolha consciente, mas como fluxo ininterrupto de acontecimentos que se sucedem, criando padrões que só percebemos ao olhar para trás. Meus pais não planejaram ter cinco filhos, não planejaram as dificuldades e alegrias específicas que enfrentariam. Simplesmente viveram, dia após dia, respondendo às circunstâncias imediatas, criando sem perceber o tecido complexo de suas existências.
Agora que estão só eles, há tempo para avaliar, analisar ou questionar os desconfortos da vida. Viver não é confortável. Ainda mais quando há tempo para senti-la em sua plenitude. O ócio, tão marginalizado e até mesmo tratado como pecado em nossa sociedade, é justamente o que nos permite de fato confrontar a vida e os desconfortos que ela traz.
O Desconforto do Ócio
Me parece que há duas escolhas diante da vida: assumir que é assim mesmo e se conformar, ou abraçar o desconforto de que a vida não é para fazer sentido e viver a angústia do questionamento sem respostas convincentes. Não há escolha fácil.
Não quero aqui criar regras. Não tenho compromisso com verdades absolutas, são apenas especulações. Amanhã posso entrar em contradição com um pensamento diferente. Não estranhe. Hoje parece que abracei a confusão e o desconforto do questionamento. Amanhã terei outras angústias. Não é um lamento. Eu gosto muito da vida com suas angústias e desconfortos.
Meu pai parece tender a se conformar, parece ter uma percepção mais simples da vida. Minha mãe, por outro lado, é confusão pura. Essa diferença entre eles me faz pensar sobre como cada um enfrenta o ocaso da vida de maneira distinta. Meu pai, com sua aceitação silenciosa, encontra uma paz que parece escapar à minha mãe, que questiona, que se inquieta, que busca sentidos mesmo quando não há respostas claras.
Talvez essa diferença reflita algo mais profundo sobre a condição humana – alguns de nós buscamos conforto na aceitação, outros na inquietação. Alguns preferem a tranquilidade de respostas simples, outros a vitalidade de perguntas complexas. Não há certo ou errado nisso, apenas diferentes formas de navegar o mesmo rio.
A Bifurcação Dolorosa
A sensação que tenho é que não sabemos muito bem o que fazer com os nossos velhos. Há muitas soluções e propostas romantizadas, mas não nos dedicamos tempo a pensar em soluções reais, se é que existem. É muito fácil se distanciar dos nossos pais, por mais duro que isso possa parecer, e muitos de nós fingem que está tudo bem por medo de confrontar esse problema.
Vivemos sob essa dura bifurcação: ou permaneço e cuido dos meus pais, ou parto para rumos diferentes. Alguém pode dizer que estou sendo duro demais, insensível. Eu sei, esse assunto gera desconforto. Há idosos lidando bem com suas velhices, há filhos cuidando de seus pais. Mas são exceções, não a regra.
Esta bifurcação é particularmente dolorosa porque não tem solução perfeita. Permanecer significa, muitas vezes, abdicar de oportunidades, limitar horizontes, aceitar uma vida mais restrita. Partir significa carregar o peso da culpa, da preocupação à distância, do telefonema que nunca parece suficiente. É um dilema que expõe as limitações de nossas estruturas sociais, que não foram desenhadas para acomodar o envelhecimento com dignidade.
Em sociedades tradicionais, os idosos permaneciam integrados à comunidade, suas experiências valorizadas, seu conhecimento respeitado. Na nossa sociedade da inovação constante, da obsolescência programada, o conhecimento dos mais velhos é frequentemente visto como ultrapassado, irrelevante. Criamos um mundo onde o novo é sempre melhor, e depois nos surpreendemos com o desamparo dos que envelhecem.
Preparando-se para o Próprio Ocaso
Eu coleciono inutilidades para a minha velhice: hobbies, violão, fotografia, literatura e uma sede de aprender. Não sei se trarão confortos, mas já comecei a me preparar, se é que isso é possível. Só o tempo dirá.
Há algo de paradoxal nessa preparação. Acumulo interesses e paixões que a lógica produtivista classificaria como “inúteis” precisamente porque intuio que serão eles, e não as conquistas profissionais ou materiais, que darão sentido aos meus dias quando o sol começar a descer no horizonte da minha própria vida. É como se, inconscientemente, eu reconhecesse que o valor da vida não está na sua utilidade, mas na sua capacidade de gerar significado, prazer, conexão.
É tentador propor regras e fórmulas. Eu sempre caio na própria armadilha que critico. Talvez seja a cultura em que vivemos que traz essa angústia: produtividade e cronogramas são quase mantras inquestionáveis. “Precisa ter objetivo de vida”, é o que ouço com frequência. “Criar metas para as férias”. “Temos que pensar na velhice”. A angústia chega antes dela.
A Cultura da Produtividade
Essa obsessão com produtividade e propósito é particularmente cruel quando aplicada à velhice. Depois de décadas servindo ao sistema produtivo, os idosos são subitamente declarados “improdutivos”, como se seu valor humano estivesse atrelado à sua capacidade de gerar valor econômico. É uma lógica perversa que transforma o merecido descanso em um fardo, tanto para quem envelhece quanto para a sociedade que não sabe o que fazer com seus membros mais experientes.
Eu mesmo, hipócrita que sou, quando vejo senhoras e senhores sentados por horas em frente às suas casas, questiono aquela condição. E sempre com desprezo. Arrogante, fui capturado pela cultura em que vivo? Provavelmente. É difícil escapar dos valores que respiramos desde a infância, que permeiam cada aspecto da nossa sociedade.
Essa contradição – criticar a cultura da produtividade enquanto a reproduzo em meus julgamentos – é talvez o exemplo mais claro do eterno retorno em minha própria vida. Retorno sempre ao mesmo ponto: a crítica que faço é a mesma que mereço. O julgamento que lanço é o mesmo que temo receber um dia. O idoso que observo com desprezo é o idoso que temo me tornar.
Nossas Contradições
Talvez seja essa a verdadeira sabedoria que posso extrair da observação dos meus pais envelhecendo: a aceitação das contradições inerentes à condição humana. Meu pai, que se conforma, e minha mãe, que questiona, são ambos autênticos em suas respostas à velhice. Eu, que critico e reproduzo os mesmos padrões que condeno, sou autêntico em minha confusão.
Não há resposta única para como envelhecer bem, assim como não há resposta única para como viver bem. Há apenas tentativas, erros, acertos, contradições, momentos de clareza seguidos de longos períodos de confusão. Há o eterno retorno das mesmas questões, vistas de ângulos ligeiramente diferentes a cada ciclo da vida.
Enquanto isso, meus pais continuam na angústia e desconforto da velhice sem propósito, se é que precisa ter um, e eu com os mesmos sintomas por não saber lidar com eles. Talvez a única coisa que possamos fazer é reconhecer essa condição compartilhada, essa vulnerabilidade mútua diante do tempo que não para, do sol que inevitavelmente se põe após atingir o zênite.
Abraçando o Desconforto
Se há alguma conclusão possível para estas reflexões, talvez seja esta: abraçar o desconforto. Não como resignação, mas como reconhecimento da complexidade da vida. Abraçar o desconforto de não ter respostas definitivas para o envelhecimento – nem o meu, nem o dos meus pais. Abraçar o desconforto das minhas próprias contradições, dos meus julgamentos que refletem mais meus medos do que minhas convicções.
Abraçar o desconforto é, paradoxalmente, uma forma de conforto. É aceitar que a vida não precisa fazer sentido para ser vivida, que as perguntas podem ser mais valiosas que as respostas, que o não-saber pode ser mais honesto que as certezas apressadas.
Observo meus pais navegando suas próprias versões desse desconforto – meu pai em sua aceitação silenciosa, minha mãe em sua inquietação constante. E me preparo, como posso, para minha própria navegação futura, colecionando não apenas hobbies e interesses, mas também perguntas, dúvidas, contradições. Pois são elas, talvez, as verdadeiras “inutilidades” que darão sentido ao ocaso, quando ele chegar.
E assim o ciclo continua, o eterno retorno das gerações, cada uma enfrentando as mesmas questões fundamentais com ferramentas ligeiramente diferentes. Não há respostas definitivas, apenas o conforto paradoxal de saber que outros antes de nós fizeram as mesmas perguntas, e outros depois de nós as farão novamente. E talvez seja nessa continuidade, nesse compartilhamento da condição humana através do tempo, que encontremos, se não respostas, pelo menos companhia na jornada.