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O Corpo na Esquina da Hipocrisia: Reflexões sobre a Profissão Mais Antiga (e Condenada)

O Corpo na Esquina da Hipocrisia: Reflexões sobre a Profissão Mais Antiga (e Condenada)

Introdução: A Casa na Beira da Estrada

Chegou-me aos ouvidos, através de um vídeo perdido nos algoritmos, uma história peculiar e perturbadora: em cidades pequenas infladas por grandes obras, onde trabalhadores de todo canto chegam em busca de sustento, instala-se por vezes uma casa de profissionais do sexo. Não por acaso, mas com um propósito quase cívico: conter o “ímpeto” masculino, evitar que a violência sexual transborde para as ruas, canalizar o desejo para um espaço designado, estrategicamente posicionado perto dos bares. Uma espécie de dique sanitário-sexual para proteger as “mulheres de bem”.

Não fui atrás da veracidade factual dessa prática específica – os comentários no vídeo sugeriam que não era delírio. Mas a simples possibilidade dessa lógica existir já dispara uma série de reflexões sobre a profissão mais antiga do mundo e o emaranhado de estigmas, condenações e, sobretudo, hipocrisias que a cercam. Por que tanto ódio, tanto desprezo por uma atividade que, se despida dos véus moralistas, talvez não seja tão diferente de tantas outras?

A Mercadoria Chamada Corpo: Uma Contradição Universal?

A crítica mais comum, o argumento que parece justificar a condenação moral, é a de que a profissional do sexo “vende o próprio corpo”, transformando-o em mercadoria. E aqui reside, talvez, a maior e mais flagrante hipocrisia social. Paremos para pensar: qual profissão, em última análise, não envolve a mercantilização do corpo e de suas capacidades?

Quando assinamos um contrato de trabalho, seja para operar uma máquina pesada, para escrever códigos, para lecionar, para cuidar de doentes ou para gerir uma empresa, não estamos alugando nosso tempo, nossa energia física, nossas habilidades cognitivas – todas elas intrinsecamente ligadas ao nosso corpo? O pedreiro vende a força de seus músculos; o professor, a capacidade de seu cérebro e sua voz; o atleta, a performance de seu físico treinado; o cirurgião, a precisão de suas mãos. Todos nós, em diferentes graus e formas, colocamos nossos corpos e suas funções a serviço de uma troca econômica.

Por que, então, a distinção abissal? Por que um trabalho é considerado nobre, dignificante, essencial, enquanto outro, que também envolve uma troca de serviços corporais por remuneração, é relegado à sujeira, à vergonha, à condenação? Seria a natureza específica do serviço – o sexo – o fator determinante? Ou seria a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo e desejo (ainda que mediada pelo dinheiro) algo tão transgressor que precisa ser violentamente estigmatizado?

O Consumidor no Escuro: A Hipocrisia Masculina

E a hipocrisia se aprofunda quando voltamos o olhar para o outro lado do balcão: nós, homens. Somos, majoritariamente, os principais consumidores e patrocinadores desse mercado. Frequentamos esses espaços, buscamos esses serviços, mas, em grande parte, perpetuamos o estigma. Muitos veem a profissão como algo sujo, degradante, mesmo enquanto participam ativamente dela.

Essa duplicidade é sintomática de uma sociedade que não consegue lidar de forma honesta com o desejo, a sexualidade e as relações de poder. Condena-se publicamente o que se consome privadamente. Exige-se uma moralidade da profissional que não se aplica ao cliente. É um jogo de espelhos distorcidos, onde a culpa é projetada na figura mais vulnerável, enquanto o consumidor se mantém na sombra, isento de julgamento social.

A própria ideia de “conter o ímpeto masculino” com casas de prostituição, como na história inicial, revela essa visão deturpada: trata a sexualidade masculina como uma força irrefreável e potencialmente violenta que precisa ser “descarregada” em corpos designados para isso, isentando os homens da responsabilidade pelo autocontrole e pelo respeito.

A Violência Legitimada pela Sombra

Não se trata aqui de romantizar a profissão do sexo, que frequentemente está associada a contextos de vulnerabilidade, exploração e, sim, muita violência. Mas é crucial entender que essa violência não é inerente ao trabalho em si, mas sim uma consequência direta da marginalização e da falta de direitos que o estigma impõe. Ao relegar essas profissionais (e profissionais) a uma zona cinzenta da legalidade e da moralidade, a sociedade lhes nega proteções básicas.

É como se o estigma funcionasse como um salvo-conduto para a agressão. Se o trabalho é visto como “sujo”, se quem o exerce é considerado “fora da lei” moral, então a violência contra essas pessoas parece, aos olhos de muitos, justificada ou, no mínimo, menos grave. Elas se tornam alvos fáceis, sem amparo legal efetivo, sem reconhecimento social que lhes garanta segurança. A falta de regulamentação e direitos trabalhistas as deixa à mercê de abusos, tanto de clientes quanto de exploradores e, por vezes, até das forças de segurança.

Para Além do Estigma: Repensando o Trabalho, o Desejo e os Direitos

Portanto, questionar a origem do estigma e a validade dos argumentos que o sustentam é também lutar contra a violência que ele legitima. Se a crítica é sobre a mercantilização do corpo, precisamos ser honestos e reconhecer que essa é uma característica presente em quase todo o mundo do trabalho. Se a crítica é moral, precisamos confrontar a hipocrisia de uma sociedade que condena o sexo pago enquanto o consome e, simultaneamente, explora corpos de outras formas em nome do lucro ou do poder.

Talvez a condenação tão veemente da profissional do sexo não seja apenas sobre moralidade, mas sobre controle. Controle sobre o corpo feminino, sobre o desejo, sobre as transações que escapam às normas estabelecidas. Se a regulamentação de outras profissões garante segurança mínima, por que negá-la aqui? O modelo de descriminalização total — como no Uruguai — demonstrou reduzir violência e ampliar acesso à saúde, mostrando que o fim do estigma é caminho para direitos concretos, não apenas simbólicos. E enquanto não confrontarmos essa hipocrisia fundamental, e enquanto não garantirmos direitos e proteções básicas a quem exerce essa profissão, continuaremos a relegar uma categoria inteira de trabalhadoras (e trabalhadores) a uma zona de sombra, violência e vulnerabilidade, sem nunca questionar nosso próprio papel nesse ciclo vicioso – um eterno retorno da culpa projetada e da responsabilidade negada.

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